Pode parecer uma
atitude menor de nossa parte reiterar críticas à Transposição nesse
momento de seca, afinal, o sofrimento das pessoas e dos animais é
infinitamente mais relevante que nossas divergências sobre determinadas
obras.
Entretanto, é
exatamente em função desse sofrimento, e da busca incessante para
encontrar caminhos de solução, que esse debate mais uma vez se coloca na
ordem do dia.
Ninguém acaba com a
seca. Ela é um fenômeno natural e normal da região semiárida. Portanto,
essas matérias sensacionalistas que gostam de falar de “terra
esturricada, mata morta, animais morrendo”, revelam ignorância a
respeito da região. Ela é assim e assim será. Por isso os índios já
chamavam essa mata de “caatinga”, que quer dizer exatamente “mata
branca”. Nada está morto, ao contrário, a caatinga hiberna, adormece
para enfrentar um período sem chuva. Com as primeiras chuvas tudo volta à
vida. Apenas o ser humano e os animais, trazidos de fora, não hibernam.
Esses precisam comer e beber, enquanto a natureza se defenda por conta
própria.
Mas, se a natureza não
muda – a não ser por uma profunda mudança no clima global -, a
infraestrutura para adequar o ser humano a essa realidade precisa ser
mudada. Essa é a única saída inteligente. Costumamos repetir que os
povos do gelo aprenderam a viver com o gelo, os povos do deserto
aprenderam a viver no deserto, e que nós já deveríamos ter aprendido a
conviver com o semiárido. Essa cultura inovadora está em construção, mas
sofre resistências terríveis de quem aprendeu a ganhar poder e riqueza
às custas da miséria do povo.
Para quem se lembra, o
grande argumento governamental – de marketing – para bancar a
Transposição era a proposta de abastecer 12 milhões de pessoas com água
potável. Para tal, cunhou-se a divisão do semiárido brasileiro entre
“Nordeste Setentrional” e o resto do “Nordeste”. Assim, induzia os
incautos a pensarem que o semiárido está restrito ao Ceará, Paraíba e
Rio Grande do Norte. Ainda mais, governo e parte da mídia, por
desconhecimento ou interesses escusos, afirmavam que a Transposição iria
levar água para o “semiárido”, desconhecendo totalmente a pertença da
Bahia, Sergipe, Alagoas, Piauí, Maranhão e Norte de Minas ao mesmo
semiárido.
Essa seca matou o
argumento oficial. A seca começou em território baiano, onde qualquer
estudante de geografia do Brasil, ensino primário ou médio, sabe que
estão 40% do semiárido brasileiro. A Transposição, mesmo que funcionasse
ou venha funcionar um dia, aponta na direção exatamente contrária ao
território baiano. Aponta para Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.
Dr. Manoel Bonfim
Ribeiro, por quase uma década diretor do DENOCS, costuma dizer que as
águas estocadas na Bahia cabem num único açude do Ceará. Para se ter uma
idéia mais precisa, dos 36 bilhões de metros cúbicos de água que podem
ser estocados no semiárido, 28 bilhões estão no Ceará. A Bahia possui
capacidade para estocar apenas um bilhão de metros cúbicos.
A Transposição
continua semiparalisada, a um custo que já supera oito bilhões de reais,
sem por uma gota d’água a quem quer que seja. Ao contrário, destruiu
açudes e cisternas por onde os canais já passaram, aumentando a penúria
da população que esperava aquela água como redenção de suas vidas.
Para completar, o
próprio Dr. Bonfim afirma que precisamos fazer a distribuição da água
estocada nos açudes. Afinal, segundo informações recentes do governo
cearense, os açudes da região estão em média com 70% de sua capacidade
abastecida. Portanto, não falta água, falta distribuição. Para ele,
temos apenas uma rede de cinco mil km de adutoras no semiárido, quando
precisaríamos de 25 mil km para democratizar a água para o meio urbano.
Segundo a Agência Nacional de Águas, 1700 municípios do Nordeste
precisam de adutoras ou serviços de água para não entrarem em colapso
hídrico até 2025.
Já expusemos à
exaustão que essa seca, terrível em termos de diminuição das chuvas, mas
prevista no clico das secas, ao menos não fará vítimas humanas na
extensão daquela de 1982. A perda de safra e animais ainda é inevitável.
Continuaremos
defendendo uma proposta sistêmica para todo semiárido, sem exclusões. O
caminho é a convivência com esse ambiente, através de uma imensa malha
de pequenas obras – se não fossem as cisternas para beber e produzir
nesse momento, ainda que seja como depósito de água de pipas, o povo
estaria bebendo lama de barreiros -, da agroecologia adaptada, da
criação de animais resistentes ao clima, da apicultura, da garantia da
terra aos agricultores, assim por diante. Para o meio urbano, a
democratização da água através das adutoras, priorizando o abastecimento
humano e a dessedentação dos animais.
Temos todos os
meios nas mãos. Faltam estadistas que conduzam e aprofundem a revolução
na relação com o semiárido. Quando assim for, secas serão apenas
fenômenos naturais, não mais tragédias sociais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário