A letra da canção
Comida (
Titãs, 1987) fala que “Comida é pasto”. Se tomarmos a frase como um exercício reflexivo, vale indagar: “Comida é mesmo pasto?”. A resposta mais óbvia provavelmente seria: “Não, comida não é pasto; pasto é alimento de animais, como vacas, bois, carneiros, ovelhas, etc”. Ao que se poderia argumentar: “Então, qual é o sentido da letra da música, quando
faz tal afirmação?”.
Na tentativa de desvendar a questão, talvez caiba considerar ainda algumas interrogações: O que é comida? Qual o significado de comida na referida canção? O que distingue a alimentação humana daquela das outras espécies animais? Por que não comemos pasto? Ou então, em que medida o comemos?
Em algumas feiras ecológicas não é raro nos depararmos com uma pequena embalagem contendo uma porção de “clorofila”. A um primeiro olhar, é fácil associar aquele conteúdo a uma reduzida quantidade de “pasto”. No entanto, em virtude do contexto em que esse alimento é ofertado, é simples deduzir tratar-se de algo destinado a seres humanos, pois divide o espaço com hortaliças, frutas e legumes. O que poderia ser confundido com um alimento estritamente reservado a algumas espécies animais, vem sendo difundido como um ingrediente para ser consumido principalmente na forma de sucos verdes, devido a seu alto valor nutritivo.
Naquele considerado por alguns o melhor restaurante do mundo, o dinamarquês Noma, a refeição proporciona uma “experiência gastronômica” equiparável a um espetáculo. Dentre as opções servidas, destacamos os seguintes itens: mexilhões envoltos em suas conchas e buquês de flores com galhos crocantes, todos comestíveis; cenourinhas e rabanetes plantados em uma terra temperada, igualmente degustável. Nesse local, o estranhamento gerado pelo inusitado consiste no chamariz para os paladares mais refinados.
A partir dos dois exemplos citados acima, não é difícil sustentar que comida também pode ser reconhecida como pasto. Entretanto, devemos ter em mente que a materialidade do alimento não é necessariamente suficiente para defini-lo como comida; ou seja, o alimento não está reduzido à sua função biológica de saciar a fome. Diante disso, importa sublinhar a distinção entre alimento e comida.
O alimento, como sabemos, está ligado às funções vitais mais elementares e sua necessidade prescinde de uma racionalidade ou de uma vontade. Isto evidencia o seu caráter biológico e nos recorda da relação estreita que mantemos com outras espécies animais, enquanto seres dependentes de uma mesma natureza.
Por outro lado, a capacidade de transformar o alimento - produto da natureza - em comida é atribuída aos seres humanos. De acordo com a célebre teoria de Lévi-Strauss (1979), a passagem do cru ao cozido, mediada pela ação do fogo (cozinhar), demarcaria a transição da natureza para a cultura. Entretanto, a distinção entre alimento - substância nutritiva-, e comida não se restringe ao ato crítico do cozimento, estendendo-se também ao modo de seu preparo (DA MATTA, 1987).
À conceituação de comida é importante acrescentar a influência das variadas formas de ingeri-la e os diversificados contextos em que ocorrem as refeições. A par disso, comer também envolve a noção de partilha, de comensalidade, permitindo explorar a dimensão social da alimentação.
Afora o caráter nutricional, a alimentação é permeada por valores simbólicos. As diferentes práticas culinárias reafirmam tradições, aspectos sociais identitários e, do mesmo modo, constituem imaginários (FISCHLER, 1995). Semelhante a outros fenômenos culturais, o alimento é ainda passível de ser visto como uma linguagem que carrega distintos significados, agindo como elemento de comunicação (DOUGLAS, 1997).
Cada sociedade determina o que deve ou não ser consumido em termos alimentares, de acordo com suas crenças e regras culturais. Isso explica porque em alguns países do mundo a carne de cavalo é uma iguaria e em outros é rejeitada, bem como a razão pela qual China e México incluem determinados insetos em suas dietas ou ainda o motivo da proibição da carne de porco para os judeus, entre outras questões.
Portanto, ao retomarmos a questão inicial, “comida é pasto?”, e, pensando no que se refere a aludida canção, em lugar de respostas, fica latente o potencial para outras indagações, sobretudo se atentarmos para refletir menos sobre a materialidade do que ingerimos e mais sobre a sua qualidade simbólica, uma vez que a comida, assim como a arte, é um produto da cultura
na qual estamos inseridos.
Referências
DA MATTA, Roberto. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. O Correio da Unesco, Rio de Janeiro, v. 15, n.7, p. 22-23, 1987.
DOUGLAS, Mary. Deciphering a meal. In: COUNIHAN, Carole e VAN ESTEIK, Penny. Food and Culture: a reader. London: Routledge, 2008.
FISCHLER, Claude. El (h) omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo. Barcelona: Anagrama, 1995.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O triângulo culinário. In: SIMONIS, Yvan. Introdução ao estruturalismo: Claude Lévi-Strauss ou “a paixão do incesto”. Lisboa: Moraes, 1979.
* Carla Pires Vieira da Rocha é fotógrafa, Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Especialista em Museologia/Patrimônio Cultural (UFRGS) e Especialista em Alimentos e Sociedade pela Universidade Aberta da Catalunha (UOC).
Nenhum comentário:
Postar um comentário