Há alguns anos, podia-se ainda apostar com certa segurança que o Estado não teria nem condições técnicas nem vontade política suficientes para fazer cumprir a lei e conter o desmatamento. Mas várias iniciativas nos últimos 13 anos mostraram aos infratores que estava em risco sua imunidade diante do Estado: medidas legislativas, intervenções de comando e controle – embora às vezes só pontuais e efêmeras – e aperfeiçoamento da capacidade de monitoramento via satélite começaram a mudar a situação. Diante disso, parece ter surgido nova estratégia: se a lei passa a ter de ser cumprida, mude-se a lei.
É isso talvez que explique o paradoxo a que estamos assistindo: o Poder Executivo brasileiro pode se gabar hoje na COP-17 de mudanças climáticas, em Durban, da redução do desmatamento; ao mesmo tempo, o Poder Legislativo está enfiando goela abaixo uma legislação que flexibiliza a proteção das florestas e anistia boa parte do passivo ambiental.
Desde o Código Florestal de 1965, muita coisa mudou. A locomotiva econômica deixou de ser a indústria e passou a ser o agronegócio. Alguns dirão que voltamos à nossa vocação colonial. A produção de alimentos passou ao primeiro plano.
Mas mudou também a ciência desde essa época e isso graças a investimentos em ciência, tecnologia e inovação que, entre outros, deram grandes frutos no agronegócio. Ora, as duas mais importantes entidades científicas do Brasil, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências, passaram um ano e meio preparando e divulgando documentos e recomendações para o aperfeiçoamento do novo Código Florestal. O que restou disso?
Sim, o texto que saiu do Senado é melhor do que o texto absurdo que tinha saído da Câmara. Já se aventou que tenha sido essa mesmo a ideia, usar-se a já consagrada estratégia do bode: põe-se um bode na sala, todos reclamam, tira-se o bode e há uma melhora.
O novo código parece apostar num futuro de obediência à lei: estabelece mecanismos de estimulo à conservação e restauração, os pagamentos por serviço ambiental e indica algumas fontes importantes de recursos; condiciona o credito agrícola e a liberação das multas à regularização ambiental; estabelece o Cadastro Ambiental Rural, que poderá se tornar um poderoso instrumento de monitoramento e controle ambiental; e aumenta a proteção em áreas urbanas.
Mas, por outro lado, o código cedeu a injunções descabidas: a proteção das nascentes e dos pequenos rios foi diminuída; as áreas úmidas na Amazônia e Pantanal ficaram mais desprotegidas, assim como grande parte das várzeas de todos os rios de planície; foi criada na 25ª hora uma regra de ocupação de apicuns e manguezais que não teve nenhum estudo científico, mas obedece a interesses empresariais; abriu-se mão de uns 20 milhões de hectares de áreas a serem restauradas.
Isso sem falar das brechas conscientemente abertas: enquanto é consenso que a agricultura familiar deveria ter tratamento privilegiado, o texto atual do projeto de lei estendeu abusivamente a proprietários de quatro módulos fiscais, o que deveria ser restrito à agricultura familiar. Fez passar gato por lebre, pois agricultura familiar se define (desde a Lei 11326/2006 art 3º) por quatro critérios que devem ser simultaneamente observados: uso de mão de obra e gestão familiar, ser a principal fonte de renda da família e, finalmente, tamanho. Estender o tratamento diferenciado a qualquer proprietário de área inferior a quatro módulos fiscais pode, é evidente, incitar a usar os bem conhecidos “laranjas”.
Tenta-se caracterizar o embate no Congresso em torno do Código Florestal como uma luta entre dois campos extremados, de ambientalistas e ruralistas. Na realidade, os atores em jogo são muito mais diversos. Uma parte dos produtores rurais está consciente dos problemas de sustentabilidade do agronegócio e sabe que o aumento da produção reside no aumento da produtividade, que cresceu muito em alguns setores, e não na derrubada de novas florestas e na redução das áreas de reserva legal para alargar a área de produção. Mas quem vem se considerando vencedor e celebrando ruidosamente é a parte mais retrógrada do ruralismo. É aquela que nunca quis cumprir a lei, sempre teve baixa produtividade na sua atividade agrícola e ficou apostando na anistia que, em larga medida, conseguiu. Pois anistiar-se quem desmatou ilegalmente até 2008 não faz sentido algum. Muito antes disso, os infratores já sabiam o que estavam fazendo. Data mais justificável, e olhe lá, seria 24 de agosto de 2001, data da medida provisória que definia e regulamentava as atividades em reserva legal e áreas de proteção permanente. Ou a data de 1998, da Lei de Crimes Ambientais. Quem obedeceu e tem consciência limpa deve hoje se sentir “otário”. Coincidência ou não, consta que “otário” na gíria policial é justamente quem tem ficha limpa.
O Brasil está perdendo uma ocasião histórica de ficar à frente de uma política que alie de forma inteligente e equitativa a produção e a sustentabilidade. Maior proteção da vegetação natural assegura sustentabilidade ambiental, maior produtividade assegura sustentabilidade econômica. Quanto à sustentabilidade social, ela seria servida pela compensação da reserva legal fora da propriedade, na forma de servidão florestal, uma maneira inteligente de distribuição de renda, onde o grande, para regularizar sua reserva legal, paga para o pequeno proprietário (geralmente em regiões de menor aptidão agrícola).
Precisamos, em suma, de uma política que pense no futuro e não só no imediato. Que se dê conta de que, tendo o País, por si só, a maior biodiversidade do planeta – 1/5 de todas espécies vivas –, ele não pode dilapidar essa riqueza não renovável. Que saiba que a reserva legal e a proteção das nascentes e de outras áreas de proteção permanente trazem enormes benefícios ao próprio agronegócio. As florestas preservadas à beira dos rios filtram a água e retêm agrotóxicos, amortizam enchentes, previnem a erosão da terra e o assoreamento dos rios. Graças a elas, ainda há peixes e navegação possível em vários rios.
Daqui a alguns meses se celebram os 20 anos da Cúpula do Rio. O país terá de explicar um novo Código Florestal que retrocede.
* MANUELA CARNEIRO DA CUNHA É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA TITULAR APOSENTADA DA USP E EMÉRITA DA UNIVERSIDADE DE CHICAGO. RICARDO RIBEIRO RODRIGUES É PROFESSOR TITULAR DA ESALQ/USP E DIRIGE O LABORATÓRIO DE ECOLOGIA E RESTAURAÇÃO FLORESTAL. JEAN-PAUL METZGER, BIÓLOGO, PROFESSOR DA USP, PRESIDE A SEÇÃO BRASILEIRA DA UNIÃO INTERNACIONAL DE ECOLOGIA DE PAISAGENS. OS TRÊS PARTICIPARAM DO GRUPO DE TRABALHO DA SBPC E DA ABC SOBRE O CÓDIGO FLORESTA
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