Essa
unidade e força política levaram o governo de João Goulart a incorporar
a reforma agrária como parte de suas reformas de base, contrariando os
interesses das elites e transformando-se num dos elementos que levou ao
golpe de 1964. Os governos golpistas perseguiram, torturaram,
aprisionaram e assassinaram lideranças, mas não destruíram o sonho, nem
as lutas camponesas por um pedaço de chão.
Após
décadas de resistência e denuncias da opressão, as mobilizações e lutas
sociais criaram condições para a retomada e ampliação da organização
camponesa, fazendo emergir uma diversidade de sujeitos e pautas. Junto
com a luta pela reforma agrária, a luta pela terra e por território vem
afirmando sujeitos como sem terra, quilombolas, indígenas,
extrativistas, pescadores artesanais, quebradeiras, comunidades
tradicionais, agricultores familiares, camponeses, trabalhadores e
trabalhadoras rurais e demais povos do campo, das águas e das florestas.
Neste processo de constituição de sujeitos políticos, afirmam-se as
mulheres e a juventude na luta contra a cultura patriarcal, pela
visibilidade e igualdade de direitos e dignidade no campo.
Em
nova demonstração de capacidade de articulação e unidade política, nós
homens e mulheres de todas as idades, nos reunimos 51 anos depois, em
Brasília, no Encontro Nacional Unitário de Trabalhadores e
Trabalhadoras, Povos do Campo, das Águas e das Florestas, tendo como
centralidade a luta de classes em torno da terra, atualmente expressa na
luta por Reforma Agrária, Terra, Território e Dignidade.
Nós
estamos construindo a unidade em resposta aos desafios da desigualdade
na distribuição da terra. Como nos anos 60, esta desigualdade se mantém
inalterada, havendo um aprofundamento dos riscos econômicos, sociais,
culturais e ambientais, em conseqüência da especialização primária da
economia.
A
primeira década do Século XXI revela um projeto de remontagem da
modernização conservadora da agricultura, iniciada pelos militares,
interrompida nos anos noventa e retomada como projeto de expansão
primária para o setor externo nos últimos doze anos, sob a denominação
de agronegócio, que se configura como nosso inimigo comum.
Este
projeto, na sua essência, produz desigualdades nas relações fundiárias e
sociais no meio rural, aprofunda a dependência externa e realiza uma
exploração ultrapredatória da natureza. Seus protagonistas são o capital
financeiro, as grandes cadeias de produção e comercialização de commodities de
escala mundial, o latifúndio e o Estado brasileiro nas suas funções
financiadora – inclusive destinando recursos públicos para grandes
projetos e obras de infraestrutura – e (des)reguladora da terra.
O
projeto capitalista em curso no Brasil persegue a acumulação de capital
especializado no setor primário, promovendo super-exploração
agropecuária, hidroelétrica, mineral e petroleira. Esta
super-exploração, em nome da necessidade de equilibrar as transações
externas, serve aos interesses e domínio do capital estrangeiro no campo
através das transnacionais do agro e hidronegócio.
Este
projeto provoca o esmagamento e a desterritorialização dos
trabalhadores e trabalhadoras dos povos do campo, das águas e das
florestas. Suas conseqüências sociais e ambientais são a não realização
da reforma agrária, a não demarcação e reconhecimento de territórios
indígenas e quilombolas, o aumento da violência, a violação dos
territórios dos pescadores e povos da floresta, a fragilização da
agricultura familiar e camponesa, a sujeição dos trabalhadores e
consumidores a alimentos contaminados e ao convívio com a degradação
ambiental. Há ainda conseqüências socioculturais como a masculinização e
o envelhecimento do campo pela ausência de oportunidades para a
juventude e as mulheres, resultando na não reprodução social do
campesinato.
Estas
conseqüências foram agravadas pela ausência, falta de adequação ou
caráter assistencialista e emergencial das políticas públicas. Estas
políticas contribuíram para o processo de desigualdade social entre o
campo e a cidade, o esvaziamento do meio rural e o aumento da
vulnerabilidade dos sujeitos do campo, das águas e das florestas. Em vez
de promover a igualdade e a dignidade, as políticas e ações do Estado,
muitas vezes, retiram direitos e promovem a violência no campo.
Mesmo
gerando conflitos e sendo inimigo dos povos, o Estado brasileiro nas
suas esferas do Executivo, Judiciário e Legislativo, historicamente vem
investindo no fortalecimento do modelo de desenvolvimento concentrador,
excludente e degradador. Apesar de todos os problemas gerados, os
sucessivos governos – inclusive o atual – mantêm a opção pelo agro e
hidronegócio.
O
Brasil, como um país rico em terra, água, bens naturais e
biodiversidade, atrai o capital especulativo e agroexportador, acirrando
os impactos negativos sobre os territórios e populações indígenas,
quilombolas, comunidades tradicionais e camponesas. Externamente, o
Brasil vem se tornando alavanca do projeto neocolonizador, expandindo
este modelo para outros países, especialmente na América Latina e
África.
Torna-se
indispensável um projeto de vida e trabalho para a produção de
alimentos saudáveis em escala suficiente para atender as necessidades da
sociedade, que respeite a natureza e gere dignidade no campo. Ao mesmo
tempo, o resgate e fortalecimento dos campesinatos, a defesa e
recuperação das suas culturas e saberes se faz necessário para projetos
alternativos de desenvolvimento e sociedade.
Diante disto, afirmamos:
1)
a reforma agrária como política essencial de desenvolvimento justo,
popular, solidário e sustentável, pressupondo mudança na estrutura
fundiária, democratização do acesso à terra, respeito aos territórios e
garantia da reprodução social dos povos do campo, das águas e das
florestas.
2)
a soberania territorial, que compreende o poder e a autonomia dos povos
em proteger e defender livremente os bens comuns e o espaço social e de
luta que ocupam e estabelecem suas relações e modos de vida,
desenvolvendo diferentes culturas e formas de produção e reprodução,
que marcam e dão identidade ao território.
3)
a soberania alimentar como o direito dos povos a definir suas próprias
políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo
de alimentos que garantam o direito à alimentação adequada a toda a
população, respeitando suas culturas e a diversidade dos jeitos de
produzir, comercializar e gerir estes processos.
4)
a agroecologia como base para a sustentabilidade e organização social e
produtiva da agricultura familiar e camponesa, em oposição ao modelo do
agronegócio. A agroecologia é um modo de produzir e se relacionar na
agricultura, que preserva a biodiversidade, os ecossistemas e o
patrimônio genético, que produz alimentos saudáveis, livre de
transgênicos e agrotóxicos, que valoriza saberes e culturas dos povos do
campo, das águas e das florestas e defende a vida.
5)
a centralidade da agricultura familiar e camponesa e de formas
tradicionais de produção e o seu fortalecimento por meio de políticas
públicas estruturantes, como fomento e crédito subsidiado e adequado as
realidades; assistência técnica baseada nos princípios agroecológicos;
pesquisa que reconheça e incorpore os saberes tradicionais; formação,
especialmente da juventude; incentivo à cooperação,
agroindustrialização e comercialização.
6)
a necessidade de relações igualitárias, de reconhecimento e respeito
mútuo, especialmente em relação às mulheres, superando a divisão sexual
do trabalho e o poder patriarcal e combatendo todos os tipos de
violência.
7)
a soberania energética como um direito dos povos, o que demanda o
controle social sobre as fontes, produção e distribuição de energia,
alterando o atual modelo energético brasileiro.
8)
a educação do campo, indígena e quilombola como ferramentas
estratégicas para a emancipação dos sujeitos, que surgem das
experiências de luta pelo direito à educação e por um projeto
político-pedagógico vinculado aos interesses da classe trabalhadora.
Elas se contrapõem à educação rural, que tem como objetivo auxiliar um
projeto de agricultura e sociedade subordinada aos interesses do
capital, que submete a educação escolar à preparação de mão-de-obra
minimamente qualificada e barata e que escraviza trabalhadores e
trabalhadoras no sistema de produção de monocultura.
9)
a necessidade de democratização dos meios de comunicação, hoje
concentrados em poucas famílias e a serviço do projeto capitalista
concentrador, que criminalizam os movimentos e organizações sociais do
campo, das águas e das florestas.
10)
a necessidade do reconhecimento pelo Estado dos direitos das populações
atingidas por grandes projetos, assegurando a consulta livre, prévia e
informada e a reparação nos casos de violação de direitos.
Nos comprometemos:
1.a
fortalecer as organizações sociaisa intensificar o processo de unidade
entre os trabalhadores e trabalhadoras, povos do campo, das águas e das
florestas, colocando como centro a luta de classes e o enfrentamento ao
inimigo comum, o capital e sua expressão atual no campo, o agro e
hidronegócio.
2.a
ampliar a unidade nos próximos períodos, construindo pautas comuns e
processos unitários de luta pela realização da reforma agrária, pela
reconhecimento, titulação, demarcação e desintrusão das terras indígena,
dos territórios quilombolas e de comunidades tradicionais, garantindo
direitos territoriais, dignidade e autonomia.
3.a
fortalecer a luta pela reforma agrácomo bandeira unitária dos
trabalhadores e trabalhadoras e povos do campo, das águas e das
florestas.
4.a
construir e fortalecer alianças entre sujeitos do campo e da cidade, em
nível nacional e internacional, em estratégias de classe contra o
capital e em defesa de uma sociedade justa, igualitária, solidária e
sustentável.
5.a
lutar pela transição agroecológica massiva, contra os agrotóxicos, pela
produção de alimentos saudáveis, pela soberania alimentar, em defesa da
biodiversidade e das sementes.
6.a
construir uma agenda comum para rediscutir os critérios de construção,
acesso, abrangência, caráter e controle social sobre as políticas
públicas, a exemplo do PRONAF, PNAE, PAA, PRONERA, PRONACAMPO, pesquisa e
extensão, dentre outras, voltadas para os povos do campo, das águas e
das florestas.
7.a fortalecer a luta das mulheres por direitos, pela igualdade e pelo fim da violência.
8.a
ampliar o reconhecimento da importância estratégica da juventude na
dinâmica do desenvolvimento e na reprodução social dos povos do campo,
das águas e das florestas.
9.a lutar por mudanças no atual modelo de produção pautado nos petro-dependentes, de alto consumo energético.
10. a
combater e denunciar a violência e a impunidade no campo e a
criminalização das lideranças e movimentos sociais, promovidas pelos
agentes públicos e privados.
11. a
lutar pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre a morte e
desaparecimento forçado de camponeses, bem como os direitos de
reparação aos seus familiares, com a criação de uma comissão camponesa
pela anistia, memória, verdade e justiça para incidir nos trabalhos da
Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos, visando a
inclusão de todos afetados pela repressão.
Nós,
trabalhadores e trabalhadoras, povos do campo, das águas e das
florestas exigimos o redirecionamento das políticas e ações do Estado
brasileiro, pois o campo não suporta mais. Seguiremos em marcha,
mobilizados em unidade e luta e, no combate ao nosso inimigo comum,
construiremos um País e uma sociedade justa, solidária e sustentável.
Brasília, 22 de agosto de 2012.
Associação das Casas Familiares Rurais (ARCAFAR)
Associação das Mulheres do Brasil (AMB)
Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA)
Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal (ABEEF)
Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
CARITAS Brasileira
Coordenação Nacional dos Quilombolas (CONAQ)
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG)
Comissão Pastoral da Pesca (CPP)
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB)
Central Única dos Trabalhadores (CUT)
Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB)
Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF)
FASE
Greenpeace
INESC
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Marcha Mundial das Mulheres (MMM)
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
Movimento Camponês Popular (MCP)
Movimento das Mulheres Camponesas (MMC)
Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE)
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Movimento Interestadual das Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB)
Oxfam Brasil
Pastoral da Juventude Rural (PJR)
Plataforma Dhesca
Rede Cefas
Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (SINPAF)
SINPRO DF
Terra de Direitos
Unicafes
VIA CAMPESINA BRASIL
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