O principal canteiro de obras da maior construção em curso no país parou novamente. Depois de oito dias de uma paralisação que reacendeu a luta contra grandes empreendimentos que impactam comunidades tradicionais, os indígenas voltaram a suspender por tempo indeterminado os trabalhos da
Usina Hidrelétrica Belo Monte, na segunda-feira (27). Eles reivindicam a suspensão de obras e estudos de barragens em seus territórios, exigindo que a consulta prévia – com poder de veto – seja realizada.
A reportagem e as fotos são de Ruy Sposati e publicadas pelo jornal Brasil de Fato, 28-05-2013.
Um sem-número de guindastes, betoneiras, tratores, escavadeiras, gruas, caminhões e caminhonetes pararam no quilômetro 50 da Rodovia Transamazônica para ver 170 indígenas Munduruku, Xipaya, Arara, Kayapó e Tupinambápassarem e ficarem. “E dessa vez não vamos sair, nem com reintegração de posse”, afirmaram as lideranças do movimento em entrevista à emissora afiliada à Rede Globo no Pará. “Alguém vai ter que vir aqui, ou nós vamos começar a plantar roça no canteiro”, disseram.
Em meio ao que parecia ser o pico mais baixo de um marasmo decorrente de sucessivas derrotas dos povos indígenas da região da Volta Grande do Xingu, surge uma nova articulação: a dos povos dos rios onde o governo pretende implementar grandes complexos hidrelétricos – e, com eles, violentas empreitadas no campo da mineração, desmatamento e caos social. “Nós somos nós e o governo precisa lidar com isso”, afirma o movimento na carta número sete da ocupação da usina Belo Monte.
Após a ocupação anterior, entre os dias 2 e 9 de maio, indígenas dos rios Tapajós e Teles Pires permaneceram acampados em Altamira (PA), aguardando uma resposta do governo federal sobre suas demandas. Mas “esperar e chamar não servem para nada”, concluem os indígenas no documento. E, então, eles reocuparam o empreendimento.
Antes disso, a concessionária Norte Energia, prevendo distúrbios, havia pedido à Justiça Federal de Altamira que garantisse a manutenção da reintegração de posse deferida liminarmente para a ocupação anterior, e estabelecesse multa para possíveis invasões. O juiz concedeu multa de 5 mil reais por dia “em caso de nova turbação ou esbulho no imóvel denominado Sítio Belo Monte”. Isso não pareceu incomodar os indígenas, que reocuparam exatamente o mesmo local de antes.
Ocupação
Os indígenas entraram no canteiro por volta das 4 horas da manhã – e, ao contrário da outra ocupação, todos os acessos do sítio, dessa vez, ficaram sob o controle dos indígenas. Isso impediu toda a operação do canteiro. Desde o início do dia, a comunidade enfrentou o assédio e a pressão de um contingente de, ao menos, 50 policiais da Força Nacional (FNSP), Polícia Rodoviária Federal, Tropa de Choque da Polícia Militar, Rotam, Polícia Civil e seguranças privados de duas empresas diferentes ligadas ao Consórcio Construtor Belo Monte. A polícia tem pressionado os piquetes a permitirem a entrada de mais policiais no empreendimento, mas os ocupantes não permitiram. “Agindo assim, vocês estão declarando guerra contra a Força Nacional”, ouviram os manifestantes.
Sofreram também o corte do fornecimento de água e energia elétrica nas instalações onde estão alojados, elementos que a Força Nacional tem utilizado para tentar desmobilizar e garantir a entrada de mais destacamentos policiais dentro do canteiro de obras, além das tropas que já residem no local. O diálogo abaixo, transcrito pelos indígenas e presenciado pela imprensa, dá a dimensão das pressões sofridas no canteiro:
- “Vocês liberam a entrada pra gente, e nós religamos a luz” – disseram os policiais aos indígenas.
- “Nós queremos que vocês saiam” – responderam os indígenas. “Nós não estamos armados, não estamos quebrando nada, podem ir”.
- “Vocês estão armados, sim” – retrucou o policial, apontando para uma lança de madeira.
- “Isso é nossa cultura”.
- “E essa é a nossa cultura” – concluiu o policial, acariciando a pistola na cintura.
Alianças
Os indígenas escreveram uma carta aos trabalhadores do Consórcio Construtor de Belo Monte (CCBM), “com quem a gente joga bola no canteiro”, propondo uma aliança tática entre comunidades tradicionais, atingidos da região de Altamira e os operários do empreendimento (segundo os indígenas, a Força Nacional não tem permitido a distribuição dos panfletos). E dizem temer possibilidades de “infiltração” de falsos trabalhadores, pagos pelo Consórcio para criar situações de crise entre eles. Toda essa “sofisticação” do movimento indígena tem incomodado o governo e as empresas envolvidas na construção da obra, que sucessivamente tem tentado descaracterizar a ação e acusar os indígenas de serem manipulados por ONGs estrangeiras.
Foto: Ruy Sposati
Na conta do governo está o silêncio retumbante sobre a pauta dos indígenas: nem um pio sobre a consulta prévia, e também “a militarização dos contextos de conflito social relativos à luta por direitos dos indígenas”, conforme apontou nota do Conselho Indigenista Missionário. Também figuram a expulsão e multa de jornalistas e um espetáculo de declarações difamatórias, racistas e caluniosas contra comunidades inteiras.
Reintegração
A Norte Energia novamente reforçou o pedido de reintegração de posse na Justiça do canteiro ocupado. Na primeira decisão, o juiz Sérgio Guedes se mostrou bastante sensível à questão indígena, e agora deu prazo de 24 horas para que a Polícia Federal e a Fundação Nacional do Índio (Funai) entregassem relatórios sobre as ocorrências à Justiça. Alguma decisão deve ocorrer nesta terça-feira (28).
“A barragem dividiu as aldeias e dividiu os parentes”, lamenta Juma Xipaya. “Dividiu o homem. Então é preciso um novo pacto, entre os encantados de cada povo, que vai unir todos os parentes”, afirma o cacique Babau Tupinambá. Ambas as lideranças fazem parte da dúzia de povos que já declararam solidariedade irrestrita ao movimento por meio de cartas de apoio aos parentes que ocupam a barragem.
Foto: Ruy Sposati
É no tom dessa espiritualidade recheada de “Saweh!” – o grito dos Munduruku que tomou de assalto a boca de todos – e pelo canto dos passarinhos de uma obra em silêncio, que os indígenas cantarolam o amanhecer do segundo dia da ocupação do canteiro, onde o sonho parece só enrijecer, apesar dos endurecimentos.
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