A Produção brasileira de alimentos e as dificuldades enfrentadas para sua regularização sanitária
Posted: 06 Apr 2016 11:13 AM PDT
Nos últimos anos, quem tem acompanhado o
desenvolvimento da agricultura familiar no Brasil, percebe a crescente
corrente do movimento agroecológico brasileiro. Esta nova abordagem da
agricultura, que busca integrar os diversos aspectos sociais, econômicos
e ambientais na unidade de produção familiar, enfrenta entraves
regulatórios que desconsideram o papel da agroecologia na economia e na
qualidade de vida das famílias envolvidas. A legislação brasileira de
produção de alimentos, por exemplo, não é apenas ultrapassada para
atender as demandas desse setor, é inadequada, excludente e moralmente
injusta com segmentos sociais que estão à margem do apoio do estado.
O marco legal da produção de alimentos é
definido por uma série de leis, decretos e normas que compõem o sistema
sanitário brasileiro. Este, estabelece as regras para o processamento e
consumo de alimentos seguros, quer dizer, tem o papel de determinar o
que é seguro para ser consumido por uma parcela significativa da
população. Porém, o que vem determinando o padrão de segurança do
alimento, é a esterilização e homogeneização nos processos de produção e
transformação alimentar. De fato, é uma completa inversão de valores
sociais e culturais, pois privilegia uma indústria rica e globalizada,
em detrimento da ampla diversidade alimentar e do patrimônio histórico e
cultural brasileiro.
Para entender a complexidade do nosso
sistema sanitário atual, é necessário realizar uma distinção entre os
diversos tipos de alimentos e os processos de produção que determinam o
produto final. Esta divisão é necessária, pois dois amplos sistemas de
regulação sanitária concorrem perante um perplexo setor regulado. As
instituições centrais são o Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA), que conceituam e determinam as variáveis da alimentação
brasileira.
Por exemplo, o MAPA regula todos os
produtos de origem animal. Porém, caso haja determinado percentual de
vegetal no doce de leite, poderia haver um questionamento sobre o órgão
regulador. O MAPA é responsável pela regulação de “bebidas”, inclusive
polpas de frutas, mas a ANVISA é responsável por “água mineral” e
“alimentos processados”. No caso de alimentos prontos para consumo, como
o “açaí processado”, que poderia ser considerado “bebida”, este é
regulado pela ANVISA.
Quadro 1: Distinção simplificada dos órgãos responsáveis pela regulação de alimentos, de acordo com o tipo de alimento.
O MAPA é a instância central e superior
de um sistema que busca padronizar os órgãos estaduais e municipais de
vigilância agropecuária
[i]. A ANVISA é uma agência que coordena o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS)
[ii],
podendo delegar à estados e municípios suas atribuições. Com isso, para
a regularização de um empreendimento de alimento é necessário
determinar, pelo menos, o produto final e o mercado a ser acessado para
iniciar uma verdadeira romaria aos órgãos licenciadores.
Essas duas variáveis, produto e mercado,
possibilitariam localizar o órgão licenciador de suas atividades, que
pode ser nas secretarias de saúde do município ou do estado, nos caso
dos produtos relacionados ao SNVS. Também poderia ser nas secretarias de
agricultura do município ou do estado, caso seja um produto de origem
animal ou bebida. De qualquer forma, a vigilância sanitária municipal ou
estadual deve regularizar a unidade de beneficiamento, caso seja
alimento.
Porém, se o produtor tiver a “audácia” de
atingir o mercado nacional, e este produto seja de origem animal,
necessariamente teria que regularizar sua situação em um dos oito
[iii]
entes federados aderidos ao sistema do MAPA (SUASA). Assim, o produto
pode ser comercializado em todo território nacional. Caso contrário,
também pode buscar o registro do seu produto/empreendimento diretamente
nas superintendências do MAPA, em geral, localizadas nas capitais.
Por exemplo, um produtor de leite e derivados que realize o registro do seu empreendimento no município
[iv],
considerando que o município tem instituído o Sistema de Inspeção
Municipal (SIM), mas que não tem sua “equivalência” ao subsistema que
regula os produtos de origem animal
[v], cuja sigla é “SISBI-POA”, tem sua comercialização restrita à área daquele município.
O SUASA foi idealizado em 2006 para
descentralizar a atuação do MAPA para estados e municípios. Porém, este
se tornou um verdadeiro mosaico de regulamentos e subsistemas, que
normatiza a produção de insumos, alimentos de origem animal e vegetal,
cada qual em diferentes setores com total distinção entre si. Entre os
três subsistemas instituídos, apenas o SISBI-POA, que regula produtos de
origem animal, existe de fato, pois é evidente o interesse econômico na
comercialização de alimentos processados de origem animal. Além disso,
os subsistemas possuem estágios diferentes de descentralização (o SUASA
Vegetal permite apenas que estados e o DF solicitem sua equivalência ao
sistema federal), o que dificulta ainda mais o entendimento e a
interpretação da legislação.
Caso um produtor de alimentos de origem
animal ainda deseje regularizar sua produção, deve buscar o Regulamento
de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA
[vi]),
instituído por decreto em 1952. Este é o regulamento para a produção
“agroindustrial” de alimentos, que acaba por subtrair da sociedade o
papel da produção artesanal e dos processos tradicionais de produção de
alimentos. O processo de revisão desta legislação está em curso, mas
continua a segregar produtores que não se enquadram no rígido modelo de
padrão agroindustrial, focado em empresas de grande porte e não na
agroindústria familiar.
Na tentativa de atenuar o fosso entre os setores marginalizados e o MAPA, foi lançada a IN/MAPA 16/2015
[vii]
que tenta normatizar a “agroindustrialização” de produtos de origem
animal nos estabelecimentos de pequeno porte, para agricultores
familiares ou produtor rural, com determinado limite de área construída
(250m²). Além disso, outras cinco cadeias serão regulamentadas (carne,
pescado, leite, ovos, produtos das abelhas e derivados destas cadeias).
Porém, a Instrução Normativa foi lançada à revelia de todo e qualquer
setor, inclusive do corpo técnico do MAPA, que a questiona e não a
reconhece, causando dificuldades no processo de regulamentação.
Para a agricultura familiar, apesar de
não ter havido um processo de consulta, a IN 16/2015 promove avanços
significativos, como os princípios da “razoabilidade”, “transparência de
procedimentos”, “racionalização e simplificação para o registro
sanitário”, entre outras, espelhadas na Resolução RDC 49
[viii]
(ANVISA). Outra questão importante foi o reconhecimento da
multifuncionalidade da unidade de produção, ou seja, mais de uma
atividade produtiva pode ser realizada no mesmo ambiente. Também foi
determinada a isenção do pagamento de taxas de registro e de inspeção
sanitária.
Apesar dos avanços verificados, o
processo de regulamentação foi iniciado com a cadeia de leite e
derivados. O MAPA realizou reuniões com convidados, mas nenhum
representante dos setores diretamente afetados pela norma participou das
discussões. A única forma de participação das representações da
agricultura familiar, foi promovida pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA) com a realização de seminários. O MDA encaminhava as
propostas e as discutia com o MAPA.
Por fim, o MAPA submeteu a proposta de
IN, em 17 de dezembro de 2015, à consulta pública por 60 dias.
Dificilmente representantes da agricultura familiar ou agroecologia e
seus empreendimentos teriam acesso ao tipo de consulta pública praticada
pelo MAPA, que é unicamente por meio eletrônico e com pouca divulgação.
Entendo que as representações da agricultura familiar poderiam agregar
pontos importantes à norma, com seu vasto conhecimento técnico e
empírico, que fundamenta, muitas vezes, o conhecimento científico. A
falta de diálogo e a soberba ideológica de uma sociedade de classes que
trata com indiferença os desiguais, não poderia ser reproduzida na
construção de uma política pública para a agricultura familiar e para a
agroecologia.
No outro lado da moeda, mostrando que é
possível ter uma legislação que atenda a maioria, tivemos o processo de
construção de uma norma na ANVISA. Pela primeira vez, agricultores
familiares e empreendimentos econômicos solidários, tiveram
reconhecimento das suas atividades produtivas, a fim de proteger
práticas, costumes, hábitos e conhecimentos tradicionais. Diferente de
outras normas, inclusive da ANVISA, houve um amplo processo de consulta
pública nas regiões, onde participaram efetivamente representantes de
agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais. A Resolução
da Diretoria Colegiada da ANVISA n. 49/2013, buscou, de maneira geral,
ser um instrumento facilitador e orientador para um público, até então,
marginalizado no sistema de vigilância sanitária.
Diferente dos sistemas e subsistemas
criados pelo MAPA, na vigilância sanitária, apenas um sistema central
(SNVS) descentraliza as ações até o nível municipal. Nesse caso, os
empreendimentos regularizados pelo município podem comercializar sua
produção em todo território nacional. Porém, até a promulgação da RDC
49/2013, não havia qualquer distinção na avaliação discricionária dos
agentes de vigilância sanitária, que salvo raras exceções, adotavam uma
postura policialesca e sem qualquer razoabilidade.
A RDC 49 ainda precisa ser regulamenta em
alguns estados e municípios, principalmente em relação à isenção de
taxas de vigilância sanitária. Além disso, também é necessária a
capacitação de agentes de fiscalização para que possam ter uma nova
postura, adotando as diretrizes da “simplificação”, “racionalização”,
“padronização de procedimentos” e a “razoabilidade quanto às exigências
aplicadas”. Esta abertura propiciada pela ANVISA trouxe não apenas o
reconhecimento da produção de empreendimentos familiares e artesanais,
mas provocou ampla discussão nacional para a construção de novos marcos
legais para a agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais.
Esta ainda é a esperança da população rural brasileira, produtora de
alimentos saudáveis e representante dessa diversidade cultural.
Por Rodrigo A. Noleto[ix]
[i] Em março de 2006 foi publicado o Decreto 5.741 que instituiu o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (SUASA).
[ii] O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) e a ANVISA foram criados pela Lei 9.782 de 26 de janeiro de 1999.
[iii]
Os estados da Bahia (único do Nordeste); Goiás e Distrito Federal;
Minas Gerais e Espírito Santo; Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul, têm seus sistemas de inspeção de produtos de origem animal,
equivalentes ao sistema brasileiro (SISBI-POA), o qual permite sua
comercialização em todo território nacional.
[iv]
Segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), em 2012, apenas
17% dos municípios tinham estruturado o Sistema de Inspeção Municipal
(SIM), que permitiria o registro de produtos de “Origem Animal” e a sua
comercialização apenas no município de origem da produção.
[v]
O Decreto de criação do SUASA (5.741/2006) constituiu os Sistemas
Brasileiros de Inspeção de Produtos e Insumos Agropecuários (1. Sistema
Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal; 2. Sistema
Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISBI-POA); e 3.
Sistema Brasileiro de Inspeção de Insumos Agropecuários). Porém, apenas o
sistema de inspeção de produtos de origem animal (SIBI-POA) está
regulamentado e em funcionamento. Em 2014 foi promulgada a IN n. 20 do
MAPA, que instituiu o SUASA-VEGETAL, permitindo que estados e o DF
pudessem aderir ao sistema federal e comercializar sua produção em todo
território nacional.
[vi] Decreto n. 30.691 de 1952 – Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal.
[vii]
Instrução Normativa n. 16 de junho de 2015 – Estabelece as normas
específicas de inspeção e a fiscalização sanitária de produtos de origem
animal, referente às agroindústrias de pequeno porte.
[viii]
Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA, N. 49 de 31 de outubro
2013, que regulariza atividades de interesse sanitário dos seguintes
setores: i) microempreendedor individual, ii) empreendimento familiar
rural e iii) empreendimento econômico solidário. A RDC 49/2013 foi
publicada no DOU em 01 de novembro de 2013.
[ix]
Rodrigo Almeida Noleto, engenheiro florestal, assessor técnico do
Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e coodenador do Projeto
Pequenos Projetos Ecossociais no Arco do Desmatamento (Fundo Amazônia).