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Pensando a Nova Política
pensar na frente de outrem.clarice lispector
De 1972 a 1975, assisti aos seminários de Gilles Deleuze, na Universidade de Vincennes, perto de Paris, onde o governo francês criara um território para os estudantes mais radicais do pós-1968. Era um espaço livre, mas ao mesmo tempo degradado – no restaurante universitário, por exemplo, como furtassem os talheres, a administração parou de fornecê-los, e só comia quem os trouxesse de casa. O pó às vezes se acumulava nos corredores. Mas as aulas, melhor dizendo, os "seminários" (il n’y a pas de cours! não há aulas, dizia Deleuze, quando lhe perguntavam se podiam assistir a elas) faziam pensar. Um dia, Deleuze elogiou as obras de Carlos Castañeda, antropólogo mexicano que estava em voga pela série de livros sobre um feiticeiro indígena com quem aprendera muito – e, em especial, a ver de uma maneira nova, diferente. (Mais tarde, Castañeda foi acusado de falsificar seus relatos mas, para o que nos interessa, tanto poderia ter escrito um documentário quanto uma obra de ficção; Deleuze também estudou Kafka, e ninguém vai perguntar se "o processo" ocorreu mesmo, e quando). Falou da importância de se aprender com a experiência. Um senhor na sala, o único de terno e gravata, lhe perguntou se por "experiência" entendia o que Husserl chamou de Erlebnis, que numa tradução literal seria "vivência".
Deleuze respondeu que não sabia alemão, que não conhecia Husserl – o que era tudo falso, porque ele era um fino entendedor da história da filosofia; só que, sendo mais um filósofo do que um historiador do pensamento, ele permitia-se esse duplo jogo. Por um lado, um certo charme: fingia uma ignorância que não tinha. Por outro, uma lição bem clara: não estava interessado no pedigree de suas idéias ou no pedantismo de seu ouvinte, mas em pensar a experiência. E concluiu, ante a insistência do senhor esnobe: "Pode definir experiência por vá ver o que está acontecendo, como Carlos Castañeda foi fazer com seu mestre índio". Há, nesse diálogo entre o filósofo e o aluno engravatado, um lado algo coquete. Deleuze não endossaria um vale-tudo com o pensamento. É difícil alguém que passou pela filosofia avalizar uma irresponsabilidade em que qualquer opinião valha. Mas ele também rejeitava uma tentativa de o enquadrarem, ele ainda vivo, como um pensador já canônico, cujas raízes alguém estudaria. Mais que isso, o que lhe importava – e por isso estava em Vincennes, apesar da agressividade de parte dos estudantes da escola, que de vez em quando invadiam as salas de aula, diziam absurdos e, no caso dele, assim o faziam desaparecer por duas ou três semanas – era que suas idéias vivessem.
E por isso, ao pedigree nobre que lhe oferecia o porta-voz do espírito de seriedade, fazendo remontar sua "experiência" à fenomenologia, ele preferia contrapor uma origem de registro quase vulgar. É claro, Deleuze não sabia que talvez Castañeda tivesse mentido. Mas ele recorria à antropologia e não aos clássicos, a um autor do Terceiro Mundo e não da Europa, ao saber de um adivinho e não ao de um acadêmico, ao mundo popular e não ao culto, à empiria e não à dedução. Este é um dos modos, certamente não o único, de nos fazer pensar. Melhor ainda, se combinarmos as duas origens, a culta que Deleuze marotamente ocultava e a vivencial, que ele enfatizava. É o que procuramos, aqui. Relatamos toda uma experiência com a política procurando, ao mesmo tempo, pensá-la. Este projeto não veio do nada. Cada texto, cada passo que demos esteve marcado por anos de reflexão sobre a política. (Algo disto se pode encontrar em meu A Universidade e a vida atual – Fellini não via filmes, ao qual remeto, mas lembrando que são dois livros inteiramente diferentes, até porque o eixo aqui é a questão da nova política).
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A idéia de uma nova política vem também de uma questão que me chamou a atenção há cerca de dez ou doze anos. No começo dos anos 90, com a esquerda sendo atacada devido ao recuo mundial do comunismo, constatei que a direita (ou o capital) detinha os melhores meios de gestão. A eficiência abandonara a esquerda e se dirigira para o lado do capital. Isso inverteu um movimento histórico. Lembremos que, vinte ou trinta anos atrás, ainda uma maneira de se referir aos países comunistas era por terem a "economia planificada", ao contrário dos capitalistas. E no entanto quase todos os países do mundo, na segunda metade do século 20, instituíram algum ministério do Planejamento. Assim o planejamento, iniciado na jovem União Soviética da década de 1920, foi um procedimento que se irradiou mundo afora. Veja-se então o que significou essa perda de iniciativa, à qual aludi, da esquerda para o capital.
Rapidamente, novos métodos de fazer funcionarem as coisas acabaram, na prática, com quase tudo o que representaria o anterior controle estatal. Reduziu-se, a uma escala microscópica, tudo aquilo que porta valor, tornando-se assim quase inútil revistá-lo na alfândega; idéias e imagens podem ser armazenadas em discos mínimos e transmitidas por uma linha telefônica qualquer, de modo que a censura se tornou ridícula e ineficaz; as comunicações se difundiram a tal ponto que controlá-las é vão; mesmo quem as intercepte e grave mal tem como processá-las, tal o seu volume. Assim, no plano dos meios, a esquerda se viu desafiada a repensar tudo. Uns o fizeram, outros, não. Mas, no plano dos fins, quem entrou em crise foi a direita. Os valores dela eram, tradicionalmente, os da família e da religião. Hoje dificilmente, pelo menos no mundo ocidental, tais valores serão defendidos com o vigor que antes os caracterizava. Uma esquerda sem meios de ação, uma direita com fins enfraquecidos, eis o quadro que se montava desde muito tempo mas que os anos 90 revelaram, e que continua presente.
O desafio é, então, o seguinte: como, com os novos meios, que repelem os controles convencionais, atender a fins importantes – que guardam, do cerne do pensamento de esquerda, a preocupação com a solidariedade. Disse, num dos textos de campanha, que as invenções tecnológicas costumam ser disputadas politicamente. O ultra-som pode servir para diagnosticar, curar – e para exterminar fetos do sexo feminino. Mas isso não quer dizer que a invenção seja neutra em termos sociais ou políticos. Acredito que todos os produtos da inteligência tendem a ajudar um mundo melhor. Não são neutros, pois, quanto aos valores. Mas essa é uma tendência, não algo automático. Entre a Internet como reino inconteste dos negócios e como arma democrática, uma luta se trava. Penso que a tendência maior dela é rumo à democracia. Mas precisamos dar nossa contribuição, para que isso se realize.
Aqui entra o uso rico dos meios, a campanha com um site, o uso da Web como espaço para difundir idéias e, mais que isso, discuti-las. Mas aqui entra também a questão final: afirmei, no prefácio deste livro, que a nova política dará menor peso aos interesses, e mais a ideais e a desejos. Da redução do peso dos lobbies e dos interesses, porque diminui a certeza na identidade de cada sujeito, falei então. Aqui, cabe distinguir ideais e desejos.
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Desejo é uma palavra que pode ser muito vaga. De propósito, deixo-a assim. Nos meus trabalhos já citados sobre república e democracia, opus desejo e vontade. Por vontade, entendemos de modo geral a força de vontade, isto é, a capacidade que acaso tenhamos de conter nossos desejos, nossos apetites, a fim de assim chegarmos a um resultado que caiba num registro nobre e superior. Um exemplo recorrente, na tradição clássica, é o da pessoa que deseja comida, bebida ou mulheres, mas consegue limitar-se, exercendo sua própria vontade. A vontade será assim, argumentei, a base para a república. O regime republicano, já pela etimologia de res publica (coisa pública, bem comum, common weal ou common wealth), funda-se numa autolimitação. Restringimos nossos desejos mais intensos. Assim se construiu a República Romana e seu ideário. Assim parece proceder todo partido que assuma o discurso do governo, do poder, o PSDB até o ano passado, agora o PT – que antes proferia um discurso mais democrático. (Aludo a um artigo de Celso Lafer, no O Estado de S. Paulo de 15 de junho, no qual o ex-ministro, citando minha distinção entre república e democracia, argumenta justamente isso: que os traços que eu atribuía aos tucanos foram incorporados, no exercício do poder, pelo Partido dos Trabalhadores). Porque a democracia, assim sustentei, tem sua expressão no desejo. Se a pensarmos como não só um regime político, mas como um anseio popular por ter e ser mais, como uma demanda que vem de baixo, se lembrarmos que parte razoável dos teóricos gregos da política considerava que demos não era só "o povo" mas também servia para designar "os pobres" e conseguia um sinônimo funcional na expressão "hoi polloi", isto é, os muitos, o vulgo – então, a democracia nasce dessa palavra obscura, que é brandida geralmente como acusação e vitupério e, por isso mesmo, é pouco e mal definida, "desejo".
Esse obscuro objeto, o desejo, será reprimido ao longo de quase toda a história política. Servirá, sempre que o desejante for pobre, como justificativa para que seja punido e confinado. Mas isso muda, em nosso tempo. Hoje, a própria dominação se assenta no apelo ao desejo. Não há sociedade de consumo sem ele. Sem ele, não há sequer consumo. Isso cria um problema sério sempre que há uma intensa desigualdade social, como é nosso caso. Por um lado, a sociedade funciona apelando ao consumo desabrido. Por outro, ao fazer isso ela suscita expectativas dos mais pobres, que não tem como atender. Desperta revoltas. Cutuca o desejo adormecido. Elimina as formas tradicionais de contê-lo. Vontade ou ideais, e desejos. Uma nova política há de operar com esses termos opostos. Mas sua oposição não é infecunda. Poderíamos chamá-la dedialética, que é nome técnico para designar uma oposição que seja altamente fecunda, ou melhor ainda, a idéia de que a fecundidade só pode nascer de oposições, nunca da harmonia. Entre o que antes se chamava ideal e o que antes se chamou desejo, as relações estão mudando.
Esbocemos um pouco este quadro. Os desejos passam para o plural. Não precisamos mais submetê-los à trindade da comida, da bebida e do sexo, como seus objetos. A própria obsessão de nosso tempo com a sexualidade pode ser um sinal de mudança. Tenho sustentado que devemos dessexualizar a ética. Isso quer dizerdeixar de lado a obsessão, que tem a moral convencional, com os comportamentos sexuais. Podem as pessoas parar de se preocupar com o que os outros fazem, ou não fazem. Um mundo mais plural em opções sexuais será, também, um mundo menos obcecado com o sexo. E o mesmo vale para a comida e a bebida. Quem reduzir seus desejos a essa velha trinca em breve estará sem assunto. Provavelmente, a obsessão atual com eles não passa de uma embriaguez final, de uma ressaca. Desejos podem tornar-se, daqui a um tempo, apenas ideais revestidos de intensa carga afetiva. Os ideais têm sido pensados a partir da renúncia, da entrega de si. Por aí se opuseram fortemente aos desejos, movidos por alguma afirmação de si, por aquilo que vulgarmente se chama egoísmo. Mas, se o enfraquecimento dos velhos esquemas repressivos de fato ocorrer, não haverá por que conservar a dicotomia entre desejos egoístas e ideais altruístas, entre desejos como expressão do afeto e uma vontade colorida pela razão, entre desejos como um grito de nosso íntimo e os ideais como repressão aos desejos. Será possível uma política que os agregue, que lhes dê força. E essa política tem a ver com a debilitação das identidades e do sujeito, de que falei no começo. As identidades, tornando-se mais precárias e plurais, levarão a uma vida social e política diferente.
Enquanto o sujeito esteve fundado no seu interesse, a ação que dele se esperava procurava fazê-lo perseverar no seu ser. Mas isso significou mantê-lo numa identidade já existente, ou seja, no passado. Daí que toda vez que sua ação real, a que ele de fato praticava, destoasse desse ser ou identidade (a de patrão, de empregado, de dona de casa), ela fosse condenada. A literatura e o cinema da segunda metade do século XX mostraram inúmeros casos dessas punições, e foram abrindo cada vez maior espaço para a rebeldia. Na primeira metade do século passado, a mulher que contestasse a família tradicional podia até ser lobotomizada. Uma bela casa no centro velho de São Paulo, que veio pertencer à USP pelo jogo das heranças vacantes, foi de uma mulher que, noventa anos atrás, guiava um carro – e foi internada pela família. Na era Brejnev, o soviético descontente com o regime era internado como doente mental. Mas essas dissidências foram crescendo. Não é apenas que essas coisas tenham acontecido. É que começaram a ser ditas. Faz pouco tempo que a irmã infeliz de John Kennedy, lobotomizada, se tornou mártir. Faz poucos anos que a mártir das motoristas paulistanas se tornou uma heroína cult em São Paulo. Tornou-se impossível refrear as dissidências. Não é mais possível pensar a política sem elas. E é empobrecedor pensá-las segundo o modelo das velhas identidades. Pensá-las assim é o que às vezes debilita a qualidade de movimentos como os feministas, de negros ou gays – quando eles, cuja razão de ser e enorme riqueza está em porem em xeque o esquema convencional, aceitam se cristalizar à imagem daquilo que recusam. Mas basta eles repelirem essa carapaça errada, que eventualmente envergam, para que recuperem sua capacidade de mudar o mundo. Um exemplo: se um movimento de mulheres defender apenas o interesse das mulheres, ele poderá até ter êxito imediato, mas perderá de vista o essencial, que depende de perceber que o assim-chamado feminino não se confunde com suas portadoras prioritárias.
Assim como a negritude não vale só para os negros, nem a homossexualidade é exclusiva de quem ama pessoas do mesmo sexo. Essas janelas abertas para a diferença, eis um traço importante da nova política. Esta será feita de idéias, ideais e desejos. É difícil dizer mais que isso. Precisamos de mais experiências nisso, de ensaio, erro e acerto.
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Quero terminar com palavras que devo a uma aluna de pós-graduação que tive neste semestre, Ana Teixeira. Ela mandou-me um belo e-mail depois de proclamados os resultados. Nele, fazia um balanço da campanha e concluía com uma citação que, penso, valoriza tudo o que fizemos. Aproveito-a então para encerrar este livro: "Porque entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra outrem. Além do mais, exige-se muito de quem nos assiste pensar: que tenha um coração grande, amor, carinho, e a experiência de também se ter dado ao pensar."